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- A farsa do debate do ciclo completo de polícia
Posted by : cepepro
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
Artigo
publicado originalmente no Estadão Noite
Chamou atenção na semana passada a
presença de oficiais da Polícia Militar e delegados da Polícia Civil em um
debate realizado na Assembleia Legislativa de São Paulo. Oficiais e delegados estavam em vários plenários da casa,
divididos por uma faixa vermelha, e trocando provocações que beiravam o
insulto. Era um evento para discutir a adoção do 'Ciclo Completo de Polícia'.
Os oficiais da PM defendem que o tal ciclo é uma das grandes soluções para os
graves problemas da caótica situação da Segurança Pública no País.
O ciclo completo de polícia se dá
quando uma força policial lida com a ocorrência criminal, do momento em que ela
chega ao local dos fatos até o instante em que o criminoso é preso. Ou seja,
junta-se na mesma força policial a prevenção, a repressão e as investigações
dos crimes. No Brasil, a PM é responsável pela prevenção e repressão e a
Polícia Civil pela investigação. Há duas formas principais de ciclos completos.
O primeiro é a atribuição de jurisdição policial por área geográfica. Por
exemplo, uma polícia cuidaria de cidades acima de 500 mil habitantes e outra
ficaria responsável pelas demais cidades. O segundo tipo seria por tipo de
delito. Por exemplo, uma polícia lidaria com delitos menos graves e a outra com
delitos mais graves.
Num olhar desatento, a ideia de ciclo
completo faz todo o sentido. Porém, uma análise mais detalhada do que está por
detrás da proposta em discussão revela que estamos pegando uma boa ideia e a
transformando em um monstro. O debate em prol do ciclo está sendo capitaneado
pelos oficiais da PM, suas associações de classe e os seus deputados eleitos. É
uma luta dos oficiais da PM travestida de algo que irá beneficiar a sociedade,
mas que na realidade irá dar ainda mais poder para o oficialato das
corporações. Os dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
mostram que a PM do Brasil é a polícia que mais mata no mundo. Não que o
policial não tenha que utilizar o poder letal quando necessário. É óbvio que
sim. Mas é senso comum na sociedade que as PMs matam e exercem violências
cotidianas contra a população, principalmente as mais vulneráveis. É
praticamente impossível passarmos uma semana sem notícia de abusos cometidos
pelas PMs do Brasil que pouco ou nada fazem para mudar a sua lógica de atuação.
Dar o ciclo completo para as PMs no atual modelo é dar a possibilidade de que
mais arbitrariedades sejam cometidas contra o cidadão. Isso sem falar que dentro
das PMs, hoje, praças não são tratados como seres pensantes, mas como
subalternos de uma lógica organizacional caduca.
Os defensores do ciclo completo dizem
que este é o modelo utilizado nos países do 'primeiro mundo', mas esquecem de
apontar que o modelo nunca vem sozinho. O ciclo completo em geral vem
acompanhado de carreira única nas polícias e um controle externo efetivo da atividade
policial, dois temas que as cúpulas das PMs se quer tocam. Há questões
organizacionais importantes a serem consideradas. As PMs não possuem prática,
não têm formação e não têm histórico de investigação de crimes. Via de regra,
quando fazem isso, o fazem adotando a violência, a ameaça e a humilhação das
pessoas. Para as PMs ter ciclo completo de polícia, elas precisariam mudar radicalmente
a sua formação e a cultura organizacional que possuem hoje. Isso sem falar na
péssima relação que as PMs constroem com as Guardas Municipais. Ter ciclo
completo requer uma outra polícia da que temos hoje.
A ideia do ciclo completo como o
grande salvador da pátria mascaras problemas importantes da segurança pública
no Brasil. Primeiro, o sistema de justiça criminal é caro, burocratizado,
distante do cidadão e atua, fundamentalmente, contra os pobres. É urgente desburocratizar
e simplificar tal sistema, e isso pode ser feito sem uma mudança mais radical.
Outro grave problema é que as penas alternativas não são efetivadas no Brasil e
isso precisa ser mudado urgentemente. A investigação policial no Brasil está
tecnologicamente defasada, é
extremamente burocratizada e, em boa parte dos casos, é ineficiente. A
necessidade de mudança é urgente, mas só pode ser feita com uma melhora
expressiva da gestão das Polícias Civis, a redução do poder dos clãs internos,
o aumento e a renovação do efetivo destas polícias e melhorias nos salários dos
policiais. A Polícia Científica está praticamente destruída e precisa ser
reconstruída urgentemente. Melhoras de condições de trabalho também são
urgentes para os praças nas PMs.
Gastamos muito e mal com segurança
pública no Brasil.
Podemos até pensar em ciclo completo
de polícia, mas este debate não pode estar sequestrado pela lógica
corporativista e não pode ser conduzido de maneira autoritária. Apenas uma
força policial não pode conduzir o debate em oposição a outra. Reformas nas
polícias são urgentes, mas temos que tomar cuidado para que o novo modelo não
seja pior do que o anterior.
*
Rafael Alcadipani é professor de Estudos Organizacionais da FGVEAESP e Visiting
Scholar no Boston College, EUA
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