Posted by : cepepro quarta-feira, 15 de outubro de 2014


O resoluto direcionamento punitivo tomado pelas políticas penais nas sociedades avançadas no fim do século 20, portanto, não diz respeito ao simples díptico "crime e castigo". Ele prenuncia o estabelecimento de um novo governo da insegurança social, "no sentido amplo de técnicas e procedimentos que têm por objetivo dirigir a conduta dos homens"14 e mulheres apanhados na turbulência da desregulamentação econômica e da conversão do welfare num trampolim para a precariedade de emprego, um desenho no qual a prisão assume um papel fundamental e que se traduz, para as categorias que estão nos patamares mais baixos do espaço social, na imposição de uma severa e arrogante vigilância. Foram os Estados Unidos que inventaram essa nova política da pobreza durante o período de 1973 a 1996, após a reação social, racial e antiestatal aos movimentos progressistas da década anterior, que se provou ser a encruzilhada da revolução neoliberal.

O crescimento explosivo do setor carcerário nos Estados Unidos, onde a população em confinamento quadruplicou em duas décadas e ultrapassou os 2,2 milhões, mesmo quando as taxas de criminalidade estagnaram e depois começaram a declinar, faz parte de uma restruturação mais ampla da burocracia norte-americana, tendente a criminalizar a pobreza e suas consequências de modo a fixar o trabalho assalariado precário como uma nova norma de cidadania no nível mais baixo da estrutura de classe enquanto remedeia o descarrilamento dos mecanismos tradicionais para manter a ordem etnorracial. A planejada atrofia do Estado social, culminante na "Lei de Responsabilidade Pessoal e Oportunidade de Trabalho", de 1996, que substituiu o direito ao welfare pela obrigação do workfare, e a súbida hipertrofia do Estado penal são dois desdobramentos concorrentes e complementares. Cada um à sua maneira, eles respondem, por um lado, ao abandono do pacto fordista de trabalho assalariado e do acordo keynesiano de meados da década de 1970, e, por outro lado, à crise do gueto como mecanismo de confinamento socioespacial dos negros que se seguiu à Revolução dos Direitos Civis e à onda de revoltas urbanas nos anos de 1960. Juntos, eles aprisionam as populações marginais da metrópole numa teia carcerária-assistencial que visa ou a torná-las úteis recolocando-as nos trilhos do trabalho desqualificado através do adestramento moral e da persuasão material, ou a excluí-las pelo confinamento nos devastados núcleos dos "Cinturões Negros" urbanos ou nas penitenciárias, que se
tornaram satélites distantes, porém diretos, desses cinturões.

Cientistas e ativistas sociais, assim como políticos, profissionais e ativistas que desejam reformar as políticas social e penal, continuam a abordá-las como se elas fossem domínios separados e isolados da ação pública, enquanto na realidade elas funcionam como duas rodas de engrenagem no bojo da estrutura de classes e espaços. Da mesma forma como o fim do século 19 assistiu à gradual desvinculação das questões social e penal sob a pressão das mobilizações da classe trabalhadora e da
reconfiguração do Estado que ela estimulava, o fim do século 20 foi o palco de uma renovada fusão entre essas duas questões, que se seguiu à fragmentação do mundo da classe trabalhadora — seu desmantelamento industrial e o aprofundamento de suas divisões internas, seu retraimento para a esfera privada e o humilhante sentimento de decadência, sua perda de sentido da dignidade coletiva, e, por fim, seu abandono pelos partidos de esquerda, mais preocupados com os jogos internos de suas estruturas partidárias, levaram ao seu quase desaparecimento da esfera pública como um ator coletivo. Daí se segue que a luta contra a delinquência de rua agora serve como tela e contracenante da nova questão social, nomeadamente, a generalização da insegurança do trabalho assalariado e seu impacto nos territórios e estratégias de vida do proletariado urbano.

Em 1971, Frances Fox Piven e Richard Cloward publicaram seu livro clássico, Regulating the Poor, no qual argumentam que "programas de ajuda são iniciados para lidar com deslocamentos no sistema de trabalho que levam à desordem em massa, e são então continuados (de forma alterada) para obrigar ao trabalho."17 Trinta anos depois, essa dinâmica cíclica de expansão e contração da ajuda pública foi superada por uma nova divisão do trabalho de designação e dominação da população desviante e dependente. Essa nova divisão acopla os serviços de bem-estar e a administração da justiça criminal sob a égide da mesma filosofia punitiva behaviorista. A ativação de programas disciplinares aplicados aos desempregados, indigentes, mães solteiras e outros "assistidos" de forma a empurrá-los para os setores periféricos do mercado de trabalho, por um lado, e o uso de uma rede penal e policial extensiva, de malha reforçada nos bairros pobres da metrópole, por outro lado, são os dois componentes de um único aparato de administração da pobreza que tem por objetivo efetivar a retificação autoritária dos comportamentos das populações recalcitrantes à ordem econômica e simbólica emergente. Falha que se procura eliminar com a expurgação física ou cívica daqueles que se provam "incorrigíveis" ou inúteis. E, à semelhança do desenvolvimento do moderno welfare nos Estados Unidos — desde suas origens no New Deal até o período contemporâneo — decisivamente modelado por sua implicação numa estrutura rígida e persuasiva de dominação racial que impossibilitou a aplicação de programas inclusivos e universalistas. A expansão do Estado penal a partir da metade da década de 1970 foi ao mesmo tempo dramaticamente acelerada e decisivamente alterada pela revolta e pelo colapso involutivo dos guetos negros, assim como pelo subsequente declínio do apoio público às demandas dos negros pela igualdade cívica.

Na era do trabalho assalariado descontínuo e fragmentado, a regulação dos lares da classe trabalhadora não é mais administrada somente pelo braço social maternal e provedor do Estado de bem-estar social; ela repousa também sobre o braço viril e controlador do Estado penal. A "dramaturgia do trabalho" não é encenada somente nos palcos dos centros de assitência pública e das agências de emprego, como Piven e Cloward insistiam na revisão de 1993 de sua análise clássica da regulação da pobreza.19 Na virada do século, ela também estende seus severos cenários para as delegacias de polícia, os corredores da Justiça penal e a escuridão das celas de prisão.

 Essa dinâmica que acopla as Mãos Esquerda e Direita do Estado opera através da divisão familiar sexual de papéis. A burocracia de assistência pública, agora reconvertida num trampolim administrativo para o emprego de baixa renda, assume a missão de inculcar, entre as mulheres pobres (e, indiretamente, entre seus filhos), o dever de trabalhar pelo trabalho em si: 90% dos beneficiários da assistência pública nos Estados Unidos são mães. O quarteto formado pela polícia, pela Justiça, pela prisão e pelos agentes responsáveis pelo controle e aplicação dos regimes de cumprimento de pena que implicam algum grau de liberdade do apenado assume a tarefa de domesticar os irmãos, maridos, companheiros e filhos dessas mães: 93% dos detentos nos Estados Unidos são homens (homens também representam 88% dos condenados em liberdade condicional e 77% dos condenados beneficiados pela suspensão condicional da pena). Isso sugere, em linha com uma rica corrente dos estudos feministas sobre políticas públicas, gênero e cidadania,21 que a invenção da dupla regulação dos pobres nos Estados Unidos nas últimas décadas do século 20 faz parte de uma remasculinização
geral do Estado na era neoliberal, o que é em parte uma reação oblíqua às (ou contra as) mudanças sociais conquistadas pelo movimento das mulheres e suas reverberações no campo burocrático.
Dentro dessa divisão sexual e institucional da regulação dos pobres, os "clientes" de ambos os setores assistencial e penitenciário do Estado caem, por princípio, na mesma suspeita: eles são considerados moralmente deficientes a menos que, periodicamente, deem prova visível do contrário. Essa é a razão pela qual seus comportamentos devem ser supervisionados e retificados pela imposição de rígidos protocolos cuja violação os expõe ao dobro de disciplina corretiva e, se necessário, a sanções que podem resultar na segregação duradoura, um tipo de morte social por faltas morais — lançando-os fora da comunidade cívica formada pelos titulares de direitos sociais, no caso dos beneficiários da assistência pública, ou fora da sociedade de homens "livres", no caso dos condenados.

A provisão do bem-estar e da Justiça criminal são agora animadas pela mesma filosofia paternalista e punitiva que enfatiza a "responsabilidade individual" do "cliente", tratado como um "sujeito", em contraposição aos direitos e obrigações universais do cidadão,22 e alcançam públicos de tamanho aproximadamente comparáveis. Em 2001, o número de lares recebendo Auxílio Temporário para Famílias Necessitadas, o principal programa de assistência estabelecido pela "reforma do bem-estar" de 1996, era de 2,1 milhões, correspondendo a algo em torno de 6 milhões de beneficiários. Naquele mesmo ano, a população carcerária atingia 2,1 milhões, mas o número total de "beneficiários" da supervisão da Justiça criminal (incluindo detentos, condenados em liberdade condicional e condenados em sursis) estava na casa dos 6,5 milhões. Além disso, os beneficiários do bem-estar e os detentos têm perfis sociais próximos e extensos vínculos recíprocos que os tornam as duasz faces, uma feminina, outra masculina, da mesma moeda em que consiste essa população.

Referencias 

13. Sobre a adesão de Clinton à tradicional panaceia republicana para o crime, ver Ann Chih Lin, “The Troubled Success of Crime Policy,” in Margaret Weir, ed., The Social Divide: Political Parties and the Future of Activist Government (Washington, DC: Brookings Institution and Russell Sage Foundation, 1998), 312-357;
sobre o redirecionamento punitivo do Novo Trabalhismo de Blair, produto de uma imitação servil das políticas dos Estados Unidos, ver Michael Tonry, Punishment and Politics: Evidence and Emulation in the Making of English Crime Control Policy (London: Willan, 2004); o aggiornamento da esquerda italiana em matéria penal é descrito por Salvatore Verde, Massima sicurezza. Dal carcere Speciale allo stato penale (Rome: Odradek, 2002); a conversão dos neossocialistas à lei e à ordem, sob a liderança de Lionel Jospin, é traçada em Loïc Wacquant, Les Prisons de la misère.
14. Michel Foucault, Résumé des cours, 1970-1982 (Paris: Juillard, 1989), “Du gouvernement des vivants,” 123.
Para uma ilustração historiográfica dessa noção, ver Giovanna Procacci, Gouverner la misère. La question sociale en France, 1789-1848 (Paris: Seuil, 1993); para uma elaboração e reconsideração conceitual, ver Nikolas Rose e
Mariana Valverde, “Governed by Law?,” Social & Legal Studies 7, no. 4 (December 1998): 541-52.

15. Michael K. Brown, Race, Money, and the American Welfare State (Ithaca: Cornell University Press, 1999), 323-353.
16. Loïc Wacquant, “Deadly Symbiosis: When Ghetto and Prison Meet and Mesh,” Punishment & Society 3, no 1
(Winter 2001): 95-133.
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